O ano que não vai acabar
Aqueles que estão indo para o 31 de dezembro crentes que 2021 vai ser diferente que 2020… podem ser os mais apegados às coisas como elas eram.
E isso é uma pena, para todos nós.
É uma pena que não estejamos nos entregando ao que está acontecendo aqui e agora, que não estejamos ancorando nossos pés no presente. Estamos tapando o sol com peneiras furadas há séculos, e sempre SEMPRE sempre existe alguém – de carne e osso – pagando caro por isso.
Vivemos há muitíssimos anos – desde antes de mim, da minha mãe, da minha avó – a promessa de futuros que nunca chegaram. Estamos literalmente correndo atrás, há séculos, de narrativas que nunca (nun-ca) se concretizaram. As coisas estão mais caras; o real vale cada vez menos; estamos nos esfalfando de tanto trabalhar com cada vez menos direitos (e teve gente que conseguiu transformar workaholism em algo desejável –choque!); mudanças climáticas a todo vapor; a fome e a miséria só aumentam, a violência também + trocentos etcéteras.
Precisamos urgentemente olhar o sol de frente, deixar a retina queimar com as manchas do nosso passado. Sim, certamente, nós evoluímos em muitos aspectos, nestes séculos, porém estivemos pagando um preço horroroso, monstruoso por isso. Pagamos com o extermínio em massa da própria vida. Precisamos VER o passado, reconhecer nele a dor e deixá-lo doer: a ferida está aí, aberta. Precisamos reconhecer sua existência para então começar a cicatrização.
Esse pôde ser um processo meu, desse ano infindável: o de reconhecer a dimensão do que nos faz absolutamente todas.os iguais; e a dimensão da DOR que muitos.as irmãos.as estão sentindo, hoje. Ver, reconhecer, acatar, co-responsabilizar-me. As coisas vão mudar quando olharmos o sol de frente. E ninguém vai morrer com isso, muito pelo contrário, ao encaramos a luz, desabrochamos, crescemos.
Siga lendo se isso lhe parecer um convite para virar de ano.
Não veio, nem pelos céus, nem pelos mares ou menos por terra, um herói que pudesse nos salvar. Nunca existiu. Nem nunca vai existir. Assim como o futuro, nunca vai existir. O futuro é apenas a projeção mental dos nossos desejos. O presente é apenas existência, é ação. E nós estivemos agindo, todos esses ufff! anos, em busca de concretizar essas projeções mentais. Muitos aqui se lembrarão de jargões como “The American Dream” e “Família Doriana” – eles traduzem muito do que foi a imagem mental de algumas gerações.
A única coisa que existe é o presente. E, em troca de promessas de futuros deslumbrantes – aqueles que menos de 10% dos humanos consegue concretizar, às custas dos outros 90% da espécie –, estivemos sacrificando o presente de todas.os. Ou por acaso esses 10% não respiram o mesmo ar que o restante? Estamos no mesmo sistema planetário, uma hora ou outra, a conta chega pra 100%.
Quais sonhos motivaram as famílias que se deslocaram de um lugar a outro, um país a outro, um continente a outro? Como as minhas famílias Basso, Michelin, Busnello, Palma, Alegretti (quanto pesam esses nomes no meu DNA? Quanto de mim está na mãe África, nossa Eva, nossa linhagem materna?). Em um peido cósmico, viemos parar tão longe, como espécie: da Idade da Pedra na África para o BrazZzil-ill-ill-ill.
Quais sonhos têm as famílias que se atiram no mar com apenas um colete e que encontram portas européias fechadas, quando sobrevivem à travessia (a mesma Europa que se construiu com as riquezas que usurpou do mundo inteiro)?
E quais sonhos eram perseguidos quando outras pessoas foram escravizadas a fim de concretizá-los??? Qual sonho valeu a vida de inconcebíveis números de seres vivos para chegarmos aqui – aqui, neste mundo doente que periga extinguir a nós próprios?
Ancoremo-nos no presente, precisamos ver onde estamos. Do alto do nosso privilégio, precisamos ver. Mesmo se nós estivermos bem, depois desse 2020 surreal, temos incontáveis irmãos e irmãs que não estão.
Eles que estiveram pagando a conta dos sonhos, até agora. Por cinco séculos. Zilhões de zilhões de plantas, animais, povos originários e cerumanos (sacumé?), toda essa gente esteve bancando a corrida dos ratos.
Só que não dá mais. Ninguém aguenta mais. E é muito cretino continuar tapando o sol com peneira furada fingindo que tá tudo bem, enquanto o resto, fora da nossa bolha, está sendo escaldado. Desse jeito, em que estamos matando 25% das espécies da Terra, não dá. Sem elas, a gente não respira, a gente não come, a gente não vive, a gente não é. Pois tudo é ecossistêmico, tudo está conectado. Não existe você sem eu sem você.
Então bora tentar sonhar de novo?
Vamos olhar pro passado, sem defesas. Vamos olhar mesmo, sabendo que vai doer. Vamos olhar as promessas de futuro que estivemos comprando: de quem?! Nós mesmos! Mas por qual motivo? Com qual o objetivo? O que estivemos de fato perseguindo?
Vamos então olhar pro presente, olhar pro lado e entender o impacto de nossas ações, de nossas escolhas, da nossa conveniente cegueira. Não vamos apontar pro lado em busca de culpados, vamos todos.as dividir a conta: estamos TODOS.AS JUNTOS.AS. A responsabilidade é sempre de todos.as.
Vamos fazer melhor, em 2021? Lembrando que ninguém é o.a grande herói que sozinho.a. vai salvar o mundo – oi, isso é Hollywood! Todes juntes na responsa do passado e todes juntes na cura do presente. É um processo, é um passo de cada vez. O primeiro, é abrir os olhos.
Enquanto não abrirmos os olhos, será sempre 2020.
Sejamos presente.
Feliz despertar. Feliz ano novo.
Coral Michelin
30/12/2020 | 18/06/Tormenta Lunar
Esses pensamentos têm influência de Edgar Morin, Bruno Latour, Ailton Krenak, Emicida, Aimé Césaire, todas as mulheres ao meu redor e muitas outras mentes que me inspiram a imaginar outros futuros possíveis.