No começo e no fim, a palavra.
Que boa maneira de começar um canal — com a ferramenta mesma esta, da escrita, das linguagens codificadas e dos versos — , com a palavra. E que melhor maneira de fazê-lo, se não justamente por aquilo que não domino? Domino, sim, a brincadeira com a palavra que se faz em texto, em conto, em poesia, em primeira pessoa ou sem pessoas, no caso da palavra que se faz acadêmica, objeto sem sujeito. Mas da semântica, da etimologia, das raízes e da filosofia da palavra, quase nada sei. Devaneios e vislumbres.
E é justamente por aí que dou o pontapé inicial: pela condição própria da ignorância que me cabe; e que me incomoda. Pelas palavras, vejam bem.
Nesses dias quarentânicos, em que medimos os tempos, as relações e os contratos com métricas virulentas, duas coisas me chamaram a atenção: 1) a proibição do uso de determinadas palavras no ambiente de trabalho, proposta por um colega hierarquicamente superior, em tom óbvio de brincadeira; e 2) o post de uma conhecida, no quase falecido Facebook, que pedia a colaboração dos amigues para criar um “léxico das palavras mais clichês e esvaziadas do momento”. Pois. Sim, concordo, estamos fartos de ouvir sobre “empatia”, “empoderamento”, “alinhamento”, entre tantos outros termos tristemente bundificados pela cultura ultra-espetacularizada de nossos tempos pós-hiper-nunca-modernos (adoraria ver um debate entre Latour, Lipovetsky e Debord, nos dias atuais).
Mas, esperem, antes de sairmos adicionando itens à lista proposta, quem sabe um minuto de reflexão?
Dois movimentos que esvaziam
Proponho enxergarmos as palavras como pessoas: elas carregam consigo sua própria história, sua cultura, os sons que denunciam sua origem (seus sotaques) e, também (talvez sobretudo) seus valores. Valores: a que se referem, exatamente, quando trazidas à baila.
Esses dias aprendi em uma live da Renata Barreto, que a palavra “calendário” vem de “calendas”. Eis a história: calendas eram os livros onde eram anotados os recolhimentos de impostos dos súditos do império romano, periodicamente. A cada ciclo completo de lua, provavelmente, a princípio. Depois de algumas reformas e revisões por estudiosos da época e por caprichos imperiais (julho é o mês de Julius Caesar, com gloriosos 31 dias; portanto como agosto, mês de Augustus Caesar, teria menos de 31? Jamais!), a periodicidade ficou marcada em 12 meses, com contagem arbitrária de dias (afinal, 28, 29, 30 ou 31, não correspondem a nenhum ciclo lunar, planetário ou solar). Eis que somos regidos, em nosso tempo, pelos livros de contabilidade do Império Romano. Calendário — essa matemática toda torta e quebrada que determina quanto vale o meu tempo — é um resquício histórico que nos faz herdeiros de Roma. Eis seu valor: contábil, monetário, subalterno, escravizado.
São mais de dois mil anos usando uma palavra sem questionar seu significado. Este é um movimento. O segundo é semelhante em seu esvaziamento, porém absolutamente diferente em sua cronologia. Consiste em descobrirmos uma palavra com aura, com brilho, com promessa. Uma palavra incendiária, que promete revoluções: EMPODERAR. Uau. E antes mesmo que possamos entender onde nos toca, o que ativa em nosso âmago, como aflorar seus significados ocultos, tarde demais, ela já foi sequestrada pelo triturador, pela massa adoradora do Deus Mercado. Virou pop, antes de ser arte. São os tempos hiper de Lipovetsky, piscamos os olhos, caiu mais uma palavra em desgraça. Design Thinking. Gratidão.
O primeiro movimento esvazia pelo esquecimento milenar, o segundo pela superficialidade instantânea. Não podemos nos esquecer que vivemos na era do tweet. Quantos tweets caberão neste texto? Será o exato número de leitores que terei?
Encham-se!
Eu vos demando! Encham-se das dores, dos sentires, dos prazeres e do indizível. Encham-se de tudo que carregamos no peito e que não sabemos mais sentir, não temos como traduzir — comando às palavras, surdas.
Pois, somos nós os culpados de ambos movimentos. Estamos regidos pelo tempo artificial que nos quer escravos e que, na mesma medida, nos tira a reflexão sobre seus próprios significados. Então, acabamos surfando sempre em superfícies, jamais nadando no escuro com os mistérios e as descobertas. Somos os esvaziadores de significados. Não temos a mais vaga ideia do que de fato quer dizer “empatia” e nos dizemos fartos de repetí-la.
Eu vos pergunto, seres que até aqui chegaram, o que é empatia? O que é, mesmo, ter empatia? Muitos dirão “é colocar-se no sapato dos outros” ou algo parecido. Isso é lá possível?! Quem aqui, não sendo mãe, consegue sentir a dor de uma que tenha perdido seu filho com uma bala “perdida”? Quem aqui, em não sendo mulher, entende o que é assédio sexual em uma cultura machista? Não sendo preto, ser preto? Não sendo pobre, ser pobre? Quem consegue, efetivamente, se colocar no lugar do outro??? Porém, vejam: a promessa trazida pela empatia é, realmente, transformadora! Ela propõe que façamos o exercício consciente de enxergar pelos olhos do outro, de entender que a realidade é um fractal de interpretações e possibilidades e que a “minha” maneira de ver o mundo é apenas minha. Empatia é, talvez, entender que a dor e a alegria podem ter origens diferentes, mas elas nos tornam iguais: toda dor é dor, não tem maior ou menor; toda alegria é alegria. Cada um no seu caminho, com suas cruzes e seus ofícios.
O exercício de deslocar-se de si para enxergar o outro, pelo que o outro é, nem pior, nem melhor, nem menos, nem mais, é, sem sombra de dúvidas, revolucionário. É uma necessidade urgente. É um encher-se de vida e de valores que vão muito além dos calendários.
Enfim, sem fim
Proponho, portanto, que paremos de esvaziar as palavras. Que possamos enchê-las de nós, enquanto revelamos seus significados. E que, uma vez à mostra suas entranhas, possamos escolher, enfim, adotá-las carinhosamente ou abandoná-las respeitosamente, tendo consciência da sua história, seu legado e sua (in)conformidade com valores atuais. Eu escolho ter meu tempo regido por um sincronário, respeitando a história dos meus antepassados que, em seus percursos repletos de aprendizados, nos trouxeram até aqui com seus calendários: gratidão profunda, como são profundas as minhas raízes e a minha linhagem humana na terra. Eu aprendo com sua história, gratidão. De vós, sou estrela em constelação.
Cada vez que alguém usar uma palavra-potência (feminismo, descolonizar, propósito, entre tantas outras) de forma fútil, como um coach* de auditório com 5 passos miraculosos para qualquer poder, não permita. Não deixe que nosso vocabulário, nossa língua, nossos valores, sejam esvaziados antes de atingirem seus fins. Não assuma posturas elitistas de domínio dos valores das palavras, quando estamos todos aprendendo — lembre-se que a sua visão de mundo é só sua, assim como o seu entendimento dele. E isso não faz de você um ser superior, mas sim apenas um grão de areia nas praias da Terra.
Além disso, peço que não apóie o apagamento das culturas do mundo — levado a cabo pela globalização de um modo de vida artificial, danoso, desconectado e embrutecedor! Rejeite o overview, a call, o invite, o draft… a “sustentabilidade”, o “desenvolvimento” e o “ subdesenvolvido”, pois somos brasileiros, somos sulamericanos, somos nativos da terra do Pau Brasil e queremos ecologia , equilíbrio e o fim da exploração**! Por fim, se você entendeu o que é empatia, ensine. Estamos todos precisando, muito.
Coral Michelin,
No dia 9 do mês da Lua Magnética, ano novo iniciado em 26 de julho.
(*) refiro-me especificamente aos aproveitadores, não aos profissionais sérios que desempenham esse papel.
(**) proponho os termos “ecologia”, “equilíbrio” e “explorados” em substituição aos termos criados pela cultura norteamericana, respectivamente: “sustentabilidade”, “desenvolvimento” e “subdesenvolvido” (ou “terceiro mundo”).